PEC aprovada privilegia estados e municípios em detrimento dos credores de precatórios
Por: José Higídio
Fonte: Consultor Jurídico
Aprovada em segundo turno pelo Senado nesta terça-feira (2/9), a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) 66/2023 vem sendo amplamente criticada pela
advocacia por promover um calote nos precatórios dos municípios e estados.
A norma, que limita esses pagamentos e acaba com o prazo para sua quitação,
tem previsão de promulgação na próxima terça (9/9).
A principal crítica está relacionada aos prejuízos para os credores de precatórios
estaduais e municipais, que já sofriam com os atrasos constantes nos
pagamentos e agora ficarão sem qualquer previsão de receber os valores aos
quais têm direito por decisões judiciais. Especialistas no assunto avaliam que a
PEC busca apenas beneficiar o Estado no curto prazo.
O texto restringe os pagamentos dos precatórios dos estados e municípios a
diferentes percentuais da receita corrente líquida (RCL), que variam conforme
a razão entre o estoque de precatórios atrasados e a RCL. A proposta também
retira qualquer limite de tempo para a quitação desse estoque.
A PEC reduz os valores que hoje são pagos pelos estados e municípios. O
percentual da RCL que, conforme a proposta, deve ser depositado para o
pagamento de precatórios varia de 1% a 5%. Esta última porcentagem ficaria
apenas para situações em que o estoque de dívidas judiciais ultrapassa 80% da
RCL.
Críticas de advogados
O Conselho Federal da OAB já informou que contestará a medida no STF logo
após a promulgação. De acordo com o presidente da entidade, Beto Simonetti,
“essa PEC viola frontalmente a Constituição, compromete a autoridade do
Poder Judiciário e institucionaliza o inadimplemento do Estado com seus
próprios cidadãos”.
Segundo Marcus Vinícius Furtado Coêlho, ex-presidente nacional da OAB
e hoje membro honorário vitalício, “o calote dos precatórios desrespeita o
direito de propriedade e torna inócuas as decisões do Judiciário”.
Em nota técnica enviada ao Congresso em julho, o CFOAB apontou que a PEC
tem inconstitucionalidades já reconhecidas pelo STF na análise de outras
emendas constitucionais sobre precatórios.
Além da nota, a entidade também apresentou um parecer técnico elaborado
pelos advogados Egon Bockmann Moreira e Rodrigo Kanayama,
especialistas em Direito Administrativo. Para eles, a PEC “viola direitos
fundamentais dos credores atuais e das futuras gerações, que herdarão um
passivo crescente e sem horizonte de quitação”.
A OAB-SP faz coro com o Conselho Federal. O presidente da Comissão de
Assuntos Relacionados aos Precatórios Judiciais da seccional paulista, Vitor
Boari, diz que a proposta “é uma agressão à responsabilidade fiscal e transfere
para o cidadão o ônus das ações perdidas por prefeituras e estados”.
Ele prevê “muitos efeitos danosos para a saúde fiscal do país e para a
credibilidade dos entes públicos”.
“O que vemos, novamente, é o Congresso Nacional com soluções midiáticas
de curto prazo, legislando com olhos sempre na próxima eleição para atender à
União, aos governadores e aos prefeitos e deixando ao léu todos aqueles que os
elegeram”, critica Boari.
Para o administrativista Wilson Accioli Filho, não há duvida de que a PEC é
um “desastre” jurídico e financeiro, tanto para a economia quanto para a
confiança da sociedade no Estado.
Na sua visão, “é evidente” que o objetivo principal da proposta é postergar
ainda mais o pagamento dos precatórios e barrar a quitação do estoque, de
forma a “garantir ainda mais sobrevida financeira para o Estado”.
O advogado Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da
Universidade de São Paulo (USP) e colunista da revista eletrônica Consultor
Jurídico, também constata que a PEC representa um calote nos credores dos
poderes públicos estaduais e municipais.
Em sua coluna, Scaff já havia classificado a norma como um “vergonhoso
desrespeito” às decisões do Judiciário e aos jurisdicionados, “que litigaram anos
em busca de uma decisão a seu favor, e agora veem seu direito judicialmente
reconhecido ser postergado por muitos outros anos, sem qualquer
previsibilidade para quitação de seus créditos”.
Regras para a União
A proposta não inclui os precatórios da União no calote, mas os retira do limite
de despesas primárias do governo federal a partir de 2026.
Um trecho prevê que as despesas anuais da União com precatórios serão
incorporadas de forma gradual na apuração da meta de resultado primário a
partir de 2027. A ideia é que, a cada ano, 10% do pagamento previsto passe a
contar para a meta.
Na visão de Scaff, esse gradualismo “adia o problema, mas não o resolve”.
Por outro lado, ele comemora um ponto da PEC relativo à União: o trecho que
classifica o montante principal de precatórios como despesa e os juros e a
atualização monetária como dívida.
Segundo o professor, isso é importante porque a “burocracia econômica” tem
classificado os precatórios como despesa e não como dívida, o que impacta nas
metas fiscais.
Ele explica que precatórios são dívidas públicas cuja quitação corresponde a
uma despesa. Mas, na visão dos economistas, depois do resultado primário
devem ser consideradas apenas as dívidas financeiras, ou seja, aquelas cujos
credores são bancos.
Assim, para Scaff, a PEC reduz o problema, mas sem resolvê-lo. Isso porque o
montante original identificado como despesa primária será reduzido ao longo
do tempo, e aumentará o montante de juros e atualização monetária.
Outros pontos positivos
Embora entenda que a finalidade principal da proposta é negativa, Accioli Filho
destaca alguns pontos positivos. A PEC permite, por exemplo, a apreensão
judicial de recursos das contas públicas caso o estado ou município não libere
os recursos destinados aos pagamentos de precatórios.
Atualmente, há uma “blindagem patrimonial” do Estado, nas palavras do
advogado. Os bens da administração pública são considerados impenhoráveis,
devido ao risco de que essa medida paralise a “economia do ente devedor” e
cause prejuízos maiores à sociedade. “A PEC trouxe uma evolução nesse
sentido”, aponta.
Pelo texto, em caso de inadimplência, o estado ou município também pode ficar
impedido de receber transferências voluntárias. Accioli Filho considera isso
positivo: “Antes, a administração não sofria efeitos negativos externos. O efeito
negativo era só diretamente para o credor do precatório.”
Por fim, ele indica uma terceira vantagem: a proposta prevê que o governador
ou prefeito inadimplente “responderá na forma da legislação de
responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa”. Isso obriga os chefes
do Executivo a gerirem bem os precatórios, pois, do contrário, podem ser
responsabilizados pessoalmente.
Hoje, se um prefeito, por exemplo, gere mal os precatórios e deixa o cargo, seu
sucessor tem a incumbência de corrigir os erros. Assim, a PEC traz uma
inovação importante — “um passo no sentido de quebrar essa armadura
jurídica que havia para o gestor que geria mal as contas públicas”, segundo
Accioli Filho.