Advogados apontam que mudanças na tributação de aplicações no exterior têm caráter arrecadatório
Por Adriana Aguiar, Valor — São Paulo
Fonte: Valor Econômico
A Medida Provisória (MP) nº 1171, sancionada ontem pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, que prevê a ampliação da faixa de isenção do imposto de
renda para quem ganha até R$ 2.640, também alterou significativamente
tributação de aplicações financeiras no exterior. Para advogados, as mudanças
na tributação têm o objetivo de aumentar a arrecadação e alguns pontos podem
ser questionados na Justiça.
A MP inclui a tributação de rendimentos recebidos no exterior de investimentos
financeiros, tributação automática de lucros de controladas no exterior (as
chamadas “offshores”) e investimentos via trusts – fundos usados para
administrar quantias de terceiros. Esse tipo de aplicação é comumente feita em
paraísos fiscais, ou seja, em países com tributação praticamente nula. A MP
1171, só traz efeitos a partir de 1º de janeiro de 2024.
Segundo o texto da MP, as pessoas físicas precisarão computar de forma
separada os rendimentos do capital aplicado fora do país a partir de 1º de janeiro
de 2024. Até R$ 6 mil anuais, os valores são isentos. Para rendimentos entre 6
mil e 50 mil reais, a alíquota será de 15%, e, para parcela acima de 50 mil, será
de 22,5%.
Até agora, não eram tributados ganhos de até R$ 35 mil mensais. Depois disso,
a alíquota era de 15% de IRPF até R$ 5 milhões, 17,5% para ganhos entre R$5
e R$10 milhões e 20% para ganhos entre R$ 10 milhões e R$ 30 milhões.
Somente para ganhos acima de R$ 30 milhões é que incidiria a alíquota de
22,5%.
A MP, por outro lado, uniformizou alíquotas para tributação de investimentos
no exterior em empresas pessoais financeiras (offshores). Até agora, lucros ou
dividendos distribuídos por empresas controladas no exterior eram tributados
sob a tabela progressiva mensal que, na prática, é de 27,5%. Com a MP, a
alíquota máxima passa a ser de 22,5%.
Segundo o advogado Hermano Barbosa, sócio do tributário do BMA
Advogados, as novas alíquotas aumentam muito a tributação de aplicações
financeiras (no exterior) e reduzem pouco as de investimentos em empresas no
exterior (offshores).
Também cria, segundo Barbosa, uma assimetria com investimentos financeiros
no Brasil, que em geral incide a alíquota de 15% (após dois anos de aplicação).
Já no caso do investimento no exterior, passa a ter uma tributação mais elevada.
“Investimentos no exterior por pessoa física se tornaram realidade, deixando
de ser ‘coisa de rico’”, diz. Segundo Barbosa, o novo regime estabelece, na
prática, uma alíquota única a todos os ganhos superiores a R$ 50 mil (ou seja,
na prática, R$ 4.166/mês). “Quem tem rendimentos mensais decorrentes de
aplicações financeiras no exterior em valores anuais de R$ 100 mil ou acima de
R$ 10 milhões ou R$ 30 milhões ficam sujeitos, basicamente, à mesma
tributação nominal”, diz
Além disso, ressalta que investimentos no exterior não preveem tributação
sobre ganhos líquidos (compensação entre ganhos e perdas entre investimentos
diversos), o que se admite em relação a investimentos nos mercados financeiro
e de capitais no Brasil.
Outra mudança está no momento de pagamento do imposto. Atualmente,
lucros apurados por empresas localizadas no exterior, ainda que controladas ou
detidas exclusivamente por investidor pessoa física localizado no Brasil, são
tributados apenas quando os lucros ou dividendos são distribuídos ou
disponibilizados ao sócio, a alíquotas da tabela progressiva mensal que chegam
a 27,5%. A nova regra, contudo, determina tributação automática dos lucros de
empresas estrangeiras, apurados em balanço levantado em 31 de dezembro de
cada ano, que sejam controladas por pessoa física residente no Brasil.
Para Barbosa, com a nova regra, o investidor (sócio residente no Brasil) pode
se ver obrigado a pagar um imposto no Brasil sobre valores que talvez ele não
possa sequer distribuir pela sua controlada estrangeira, porque deveriam
primeiramente compensar prejuízos ou formar reservas.
O texto também prevê a atualização dos valores de bens e direitos no exterior
ao seu valor de mercado em 31 de dezembro de 2022, sendo tributada a
diferença do custo de aquisição à alíquota de 10%. Neste caso, o imposto deve
ser pago até 30 de novembro deste ano. Para Hermano Barbosa, a iniciativa é
positiva como instrumento extraordinário de arrecadação, além de justificável
politicamente pela ausência de correção do valor desses bens na declaração de
imposto de renda. Para ele, contudo, o programa pode não ter um êxito
significativo porque a alíquota prevista, de 10%, seria alta. “Em propostas de
programas anteriores, a alíquota variava entre 4% e 6%” ,diz.
A MP 1171 também estabelece, pela primeira vez, uma regra sobre tributação
de trusts no Brasil. Esse instituto é muito utilizado no exterior para as
finalidades mais diversas. Embora organização da sucessão (herança) seja uma
delas, também podem incluir outras, como filantropia, previdência, seguros em
geral. “A MP 1171 finalmente viria suprir essa lacuna. Até hoje, nunca houve
regra específica no Brasil, especialmente em sede legal, regulando a tributação
de trusts. Isso era ruim porque abria espaço para incertezas”, diz Barbosa.
Basicamente, a MP reitera orientação adotada pela Receita Federal à época do
Regime Especial de Regularização de Cambial e Tributária (RERCT) de 2016,
que consistia em tratar o trust como uma figura transparente para fins
tributários. Assim, na prática, ela confirma o tratamento que já era adotado por
muitos contribuintes.
Para Hermano Barbosa, ressalvado o programa especial de atualização
voluntária do valor de ativos no exterior, é desnecessário e lamentável que
medidas de tamanha importância, merecedoras de importante debate público,
tenham sido editadas por meio de uma medida provisória. “É desnecessário
porque os temas em questão, claramente, não configuram casos de “elevância
e urgência, para os quais a Constituição Federal reserva a competência
extraordinária para edição de medidas provisórias”, diz.
Segundo Marcos Matsunaga, sócio do Ferraz de Camargo e Matsunaga
Advogados (FCAM), a MP dá um giro de 180 graus na tributação de pessoas
físicas, que historicamente eram tributadas sob o regime de caixa (só quando
entrassem os ganhos) e agora passa para quase um regime de presunção com o
claro propósito de aumentar a base tributária, se igualando ao tratamento dado
a algumas pessoas jurídicas.
Esse tema poderá ser levado ao Judiciário, segundo Matsunaga, não para
discutir a forma mas para tratar de casos específicos de pessoas jurídicas para
definir se na realidade existe de fato uma renda que incidiria a tributação. Isso
porque o artigo 5º diz que deve ser tributado renda ativa própria “aquela obtida
diretamente pela pessoa jurídica mediante a exploração de atividade econômica
própria, excluídas as receitas decorrentes, exclusivamente, de royalties, juros,
dividendos, participações societárias, aluguéis e ganhos de capital, exceto na
alienação de participações societárias ou ativos de caráter permanente
adquiridos há mais de dois anos, aplicações financeiras; e intermediação
financeira”. E também para discutir caso estejam em países cujos tratados
internacionais impeçam a bitributação.
Para o advogado Edgar Santos Gomes, sócio do Terciotti, Andrade, Gomes,
Donato Advogados, essas alterações já eram de certa forma esperadas. “Até
hoje, os lucros obtidos no exterior só eram tributados no Brasil quando esse
dinheiro entrava de volta. Era questão de tempo para o governo impedir esse
diferimento eterno”, diz Para ele, no entanto, pode haver discussão judicial uma
vez que está se desconsiderando a existência de uma empresa estrangeira. “A
rigor, quem poderia tributar é apenas o país onde está sediada a empresa”, diz.
Além disso, afirma que não se podem ignorar os tratados internacionais. Hoje
o Brasil é signatário de 36 tratados internacionais para evitar a dupla tributação.
Para ele, isso deve incentivar que pessoas deixem o país, uma vez que ao deixar
de serem residentes não podem ser tributados.
A MP entra em vigor com força de lei, mas ainda precisa ser aprovada pelo
Congresso antes de ser convertida definitivamente em legislação.