STJ valida arrecadação de bens de empresário em offshore para pagamento de credores
Por: Marcela Villar
Fonte: Valor Econômico
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) validou a arrecadação de
bens do empresário Daniel Birmann, reunidos em uma offshore, para o
pagamento dos credores da Sam Indústrias, da qual era sócio. A decisão
permite que o Judiciário tome posse de mais de três milhões de ações - isto
é, o controle - da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), uma das maiores
empresas de armamento da América Latina, que fornece munição para a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e controla a Taurus
Armas.
Por unanimidade, os ministros mantiveram acórdão do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro (TJRJ) que afastou a necessidade de Incidente de
Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), instrumento usado para
atingir bens de terceiros em casos de fraude ou ocultação de patrimônio. Isso
porque foi considerado que os papéis pertenciam ao próprio Birmann na época
da decretação da falência da Sam Indústrias, em 2008, mas haviam sido
ocultados.
Como os efeitos da insolvência foram estendidos a ele na sentença de quebra,
todos os ativos deveriam ter sido colocados à disposição para venda e posterior
pagamento aos credores. Porém, desde 2008 nenhum ativo havia sido
encontrado para honrar com a dívida da Sam Indústrias, estimada em R$ 600
milhões (valor ainda em discussão).
O STJ não julgou o mérito do recurso, pois implicaria reanálise de provas, o
que é vedado pelo regimento da Corte. Advogados especialistas no tema,
contudo, dizem que é uma decisão pioneira, que fortalece a possibilidade de
utilização desse tipo de incidente de arrecadação para buscar ativos ocultos em
insolvências.
Foi mantido o acórdão do TJRJ que entendeu que Birmann detém 98% da
participação acionária da CBC, avaliada em, pelo menos, R$ 2 bilhões, segundo
advogados do caso. Esse montante faria com que a falência fosse uma das
poucas superavitárias no Brasil. Após o pagamento do passivo, o excesso
voltaria para a conta bancária do empresário.
Caso tratou do uso de uma cadeia societária pelo próprio falido”
— João O. de Noronha
Foram analisados dois recursos - um de Bernardo Birmann, filho de Daniel, e
outro da CBC Global, controlada da CBC nos Estados Unidos. Ambos são os
atuais detentores das ações da CBC, transferidas por Daniel ao longo dos anos.
O incidente tinha o objetivo de reconhecer a nulidade da transferência. Ao
Valor, a defesa da CBC Global informou que vai recorrer da decisão.
O procedimento de arrecadação de bens foi instaurado pelo Duarte Forssell
Advogados (DFA), contratado em 2018 pela massa falida para fazer a busca e
bloqueio de bens do empresário, inclusive no exterior. Mais de 20
procedimentos foram abertos, no Brasil e em diversos países e paraísos fiscais,
como nas Ilhas Caymann e Ilhas Virgens Britânicas. O que envolve as ações da
CBC é o mais avançado.
O incidente é sigiloso, mas o julgamento no STJ foi público. Na sessão, João
Felippe Varella Ribeiro, do Gouvêa & Ribeiro Advogados, que defende
Bernardo Birmann, disse que não houve direito de defesa no incidente. E que
deveria ter sido instaurado um IDPJ ou ação revocatória para revogar a
transferência das ações para a CBC. Segundo ele, na época da falência, os papéis
pertenciam a outras companhias com personalidades jurídicas distintas.
“O incidente de arrecadação de bens não foi proposto contra aqueles que foram
atingidos pelo decreto falimentar, mas sim em face de terceiros que não
figuraram como parte do processo falimentar e contra quem não foram
estendidos os efeitos da falência”, afirmou Ribeiro, em sustentação oral, em
dezembro (REsp 2000839).
Beatriz Donaire de Mello e Oliveira, do Caputo Bastos & Fruet Advogados,
que representou a CBC Global, também no julgamento do STJ, disse que foi
feita uma mediação com a Braslight, fundo de pensão da Light, principal credor
da falência com R$ 350 milhões a receber, e o seu crédito ficou garantido.
Defendeu que, por conta da mediação, a arrecadação “acaba por ser até mesmo
inócua, porque o procedimento falimentar já está praticamente finalizado”.
Segundo fontes, a mediação foi uma tentativa de Birmann encerrar a falência e
contornar os incidentes de arrecadação de bens para não ter o patrimônio
atingido. O acordo envolveu a XP, que comprou o crédito da Braslight no ano
passado. A irmã de Daniel, Miriam Birmann, assumiu a dívida da Braslight em
nome do irmão e ainda deu uma garantia de R$ 100 milhões para o pagamento
dos outros credores.
O acordo foi homologado pela Justiça em novembro. Octaviano Duarte Filho,
sócio do DFA, disse, na sessão do STJ, que a falência está sendo resolvida não
por conta da mediação, mas pela atuação da banca. “São anos de trabalho e
investimentos milionários e uma fraude desvendada. Por isso que essa falência
bilionária está sendo resolvida com o pagamento de juros e correção monetária.
Não é essa mediação, que só existiu por conta desta demanda.”
O relator, ministro João Otávio de Noronha, acatou a tese do DFA e negou as
alegações de violação processual de Birmann e da CBC Global. Ele foi
acompanhado por unanimidade. “O caso dos autos não tratou da validade ou
eficácia dos negócios jurídicos celebrados entre o falido e terceiros, mas sim da
utilização de uma cadeia societária, pelo próprio falido, com único propósito de
escamotear o patrimônio em detrimento dos seus credores”, afirma ele, no
acórdão.
Por isso, acrescenta, não seria necessária a desconsideração da personalidade
jurídica, uma vez que não é caso de “levantamento do véu que separa a
sociedade e sócios para atacar o patrimônio de uma ou de outros”, mas sim o
de se atingir os bens de Birmann, real dono das ações da CBC.
Para o advogado Daniel Carnio Costa, sócio do Daniel Carnio Advogados e exjuiz,
a decisão é pioneira e fortalece o uso do incidente de arrecadação, apesar
de o julgamento ter sido formal, com base na Súmula nº 7 do STJ. “O Tribunal
do Rio chegou à conclusão que não se tratava de desconsideração de
personalidade jurídica e sim de arrecadação de um ativo do próprio falido, que
havia sido escondido e era da massa. O STJ não pode reavaliar essas questões
porque envolve a análise de provas”, diz.
Agora, o juiz da falência pode determinar a avaliação das ações da CBC para
depois seguir com a venda. Mas deve haver uma discussão sobre a necessidade
da alienação, devido ao acordo de mediação feito com a Braslight e a garantia
apresentada para o pagamento de outros credores. “As ações já foram
arrecadadas e estão à disposição do juiz da falência para pagar uma dívida. Mas
se não tiver mais dívida, não teria por que ocorrer a venda”, afirma uma fonte
que acompanha o caso.
O último relatório do administrador judicial Bruno Rezende, da Preserva-Ação,
foi a favor de Birmann, pela desnecessidade da venda das ações da CBC. “A
mediação possibilitou que a maior dívida concursal da falência fosse saneada,
através de métodos autocompositivos, pelos quais um terceiro assumiu o
pagamento integral de tal verba, exonerando a massa falida do dever de pagar
tal obrigação, o que, como consequência, torna desnecessária a persecução de
ativos para se possibilitar o pagamento de tal crédito, a fim de evitar pagamento
em duplicidade”, diz no documento.
Em nota, Pedro Murgel, sócio do CMA Advogados, que defende a CBC, afirma
que Daniel Birmann não é dono da CBC e que ainda é preciso fazer a avaliação
das ações da empresa para se prosseguir com a venda “caso fosse necessária a
obtenção de recursos para o pagamento dos credores, o que não ocorre no caso
em questão”. Defende ainda que a falência está sendo resolvida por conta do
acordo homologado com a Braslight e os demais créditos (trabalhista e fiscal)
foram quitados. “Tais fatos, por si só, impedem qualquer impacto nas ações da
CBC”, diz.