STJ definirá validade de medidas de cobrança atípicas
Por: Marcela Villar
Fonte: Valor Econômico
A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vai definir, em recurso
repetitivo, se é possível aplicar medidas atípicas em ações de cobrança,
como suspensão de passaporte, bloqueio de cartão de crédito e de redes
sociais. Enquanto credores dizem que essas saídas são eficientes para
pressionar o pagamento de dívida, devedores entendem ser uma atitude que
ultrapassa direitos fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, o de
ir e vir e o da liberdade de expressão.
Os dois recursos escolhidos são do Banco Daycoval. Em um deles, a
instituição questiona decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que
negou o bloqueio do passaporte, Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e
cartões de crédito de devedor com dívida superior a R$ 400 mil.
No acórdão, o relator, desembargador Alberto Gosson, cita o Código Civil
Francês inspirado na Revolução Francesa de 1789, que vedou a pena de prisão
civil por dívida. Para ele, o débito se consolidou no patrimônio do devedor,
“não mais cabendo a penalização corporal ou a restrição da liberdade
(escravidão) como modalidade de compensação pela não solução de dívidas”.
Na visão de Gosson, as medidas atípicas não podem ultrapassar a penalização
patrimonial. “O devedor deve dinheiro e, por não pagar, pode ter seu direito de
ir e vir (e não se diga que não se trataria de ofensa ao direito de locomoção,
ainda que em intensidade menor do que o cerceamento de locomoção física,
como o caso da prisão) substancialmente cerceado”, afirma (processo nº
2041664-45.2021.8.26.0000).
No outro caso, o Daycoval pede os mesmos bloqueios contra uma empresária
do ramo de aço que deve cerca de R$ 300 mil por um financiamento cuja
garantia não existe mais, o que motivou a execução. Tanto a sentença quanto o
TJSP indeferiram o pedido (processo nº 2272477-42.2019.8.26.0000).
Vários partes interessadas acompanham as ações no STJ, como a Federação
Brasileira de Bancos (Febraban) e o Instituto Brasileiro de Direito Processual
(IBDP). Segundo a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas do
STJ, existem 76 acórdãos sobre o tema na Corte, além de 2.168 decisões
monocráticas até o ano passado, quando o repetitivo foi afetado (Tema 1137).
De acordo com advogados, o tema é relevante por permitir o cumprimento de
sentenças de forma mais célere. A suspensão nacional de processos
determinada pela Corte, porém, tem feito muitos juízes negarem a medida,
inserida no artigo 139 do Código de Processo Civil (CPC) em 2015.
Gabriel Orleans Bragança, sócio do SOB Advogados, diz que a previsão se
aplica a qualquer processo. “O objetivo é fazer com que a contraparte cumpra
a decisão. Não estamos indo além do patrimônio em si, trata-se de compelir o
devedor a pagar”, afirma. Ele lembra que o devedor é intimado a indicar bens
a penhora - do contrário, pode ser multado por litigância de má-fé, por faltar
com a verdade.
Esse tipo de estratégia, diz, só faz sentido quando há indícios de ocultação de
patrimônio. Com a popularização da blindagem patrimonial, acrescenta, tem
sido cada vez mais difícil localizar bens para que as dívidas sejam adimplidas.
“Se o devedor não indica bens a penhora e o Sisbajud vem com uma resposta
negativa ou infrutífera, é natural que se pense na possibilidade blindagem
patrimonial”, afirma. “É quase impossível identificar ativos quando se vale
desse expediente. É aí que cabe a medida coercitiva.”
Já na visão do advogado Enio Expedito Franzoni, do Franzoni Advogados
Associados, que defende a devedora em um dos casos no STJ, permitir os
bloqueios é sinônimo de regressão, como no direito romano. “Se essas medidas
forem avançando, vamos chegar à pré-história, em que a pessoa pagava com a
própria vida. Se você deve ao banco, ele bloqueia o cartão de crédito e a pessoa
não pode pagar farmácia, conta de telefone, luz, água e atividades elementares
à dignidade da pessoa humana, que ficam tolhidas.”
No caso de sua cliente, foi feito um financiamento para a compra de aço para a
empresa dela, a Perfilados Vanzin, que acabou em recuperação judicial.
Segundo Franzoni, a jurisprudência tem estado bem dividida, mas ainda há
maioria favorável aos devedores. “Diria que está 60% pelo não bloqueio.”
Para Cassio Scarpinella Bueno, presidente do IBDP e professor da PUC-SP, o
tema no STJ não está bem representado pelos processos selecionados. “São
casos muito corriqueiros, de coisas do dia a dia. A discussão é muito mais
ampla”, afirma ele, indicando que o julgamento ficou limitado a bancos, que
têm regras próprias.
Segundo ele, a jurisprudência caminha para a legalidade da previsão das medidas
atípicas, desde que esgotados outros meios de penhora de bens. Ele lembra que
o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já analisou o artigo do CPC, que foi
declarado constitucional. A ação foi ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores
(PT), que queria reduzir o escopo das medidas coercitivas, afastando o bloqueio
da CNH, passaporte, assim como a proibição de participação em concurso e
licitação pública (ADI 5941).
O GMW Advogados Associados, que atua na defesa do Banco Daycoval, diz
ter adotado a estratégia de pedir o bloqueio do passaporte e CNH por entender
que “se o devedor tem condições de fazer viagem internacional, ele tem o
recurso ou existe alguma fonte financiando, da mesma forma, se tem uma
CNH, tem um carro, nem que seja alugado”.