03/06/2025

Receita Federal tributa descontos obtidos em recuperação judicial

Por: Marcela Villar
Fonte: Valor Econômico
A Receita Federal quer cobrar Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL sobre o
ganho obtido com os descontos aplicados em plano de recuperação judicial
logo que o acordo com os credores é homologado pela Justiça. A
interpretação antecipa o recolhimento dos tributos, segundo especialistas, já
que, nesse momento, o deságio ainda não se concretizou totalmente - muitos
planos preveem o pagamento da dívida reduzida ao longo de dez anos ou
mais.
Também há o risco, dizem, de a empresa descumprir o plano de recuperação,
o que faria com que as dívidas voltassem aos valores originais, afastando a
justificativa da Receita para a tributação. O entendimento consta na recente
Solução de Consulta nº 74/2025, editada pela Coordenação-Geral de
Tributação (Cosit), que deve ser seguida por todos os fiscais do país.
Na visão de advogados, a questão se agrava porque, na prática, obriga a empresa
a recolher os tributos sobre o deságio em dinheiro, sem parcelar e antes de
começar a pagar os credores. Normalmente, dizem, quando há prejuízo fiscal,
o estoque é usado em transações tributárias com a União.
A consulta foi feita por uma empresa em recuperação judicial que aplicou um
desconto de 80% da dívida por meio do plano aprovado. Ela ficou na dúvida
se o ganho obtido deveria ser tributado logo após o trânsito em julgado (quando
não cabe mais recurso) da decisão que homologou o acordo, ou após o prazo
de dois anos de fiscalização judicial do processo.
Para a empresa, não há “disponibilidade econômica” no primeiro momento,
tampouco certeza de que o plano será cumprido. E, se não for seguido, é
decretada a falência, como prevê o artigo 73, IV, da Lei de Recuperação Judicial
e Falência (nº 11.101, de 2005), com a reconstituição da dívida original.
Por isso, o contribuinte entende que “o desconto somente será definitivo após
a ocorrência de evento futuro e incerto, sujeitando-se à condição suspensiva”.
Segundo os artigos 116 e 117 do Código Tributário Nacional (CTN), tal
condição adia a ocorrência do fato gerador do tributo até que a condição se
concretize.
Mas essa não foi a conclusão da Cosit. Para a fiscalização, quando a recuperação
judicial é deferida, já há uma mudança na situação patrimonial da devedora -
fato gerador para que o tributo seja cobrado. “Uma vez concedida [a
reestruturação], as dívidas restam, desde já, reduzidas, motivo pelo qual é esse
o momento em que a consulente deve proceder ao reconhecimento da receita
gerada em contrapartida à diminuição de seu passivo”, afirma.
O entendimento é o de que a empresa deve registrar na contabilidade os valores
dos descontos como uma receita. E, a partir do registro, o montante já vale
como base para incidência do IRPJ e CSLL. “Em se tratando de condição
resolutória, considera-se o ato ou negócio apto a produzir seus efeitos
tributários desde a origem, ainda que posteriormente possam ser aqueles
resolvidos na esfera privada.”
A interpretação dividiu especialistas, que entendem que essa tributação não
deveria ocorrer em algumas situações. Outros dizem que, na prática, as
empresas em recuperação não registram os descontos na contabilidade de
imediato, apenas de forma proporcional ao pagamento das parcelas.
O tributarista Rafael Serrano, sócio do CSA Advogados, defende que a
cobrança deveria ocorrer só após o cumprimento integral do plano de
recuperação - mesmo que demore alguns anos - e não logo que a empresa
“consegue um fôlego”. “Entendo que, apesar de aparentemente se ter o
desconto, não é fato jurídico definido, vai depender se a empresa conseguir se
soerguer”, afirma.
Nunca vi o reconhecimento imediato na contabilidade da ‘receita’ obtida com
o deságio”
— Nathalia Gabina
O problema, para ele, é que mesmo a possibilidade inserida pela reforma da Lei
de Falências, a 14.112/2020, de permitir o uso de todo o prejuízo fiscal para
pagar essa nova dívida, a empresa pode não ter mais estoque, pois usou em
transação tributária com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
A advogada Nathalia Gabina, sócia do escritório Mac Dowell, Melo & Leite de
Castro Advogados, especialista em reestruturação, diz que nunca viu o
reconhecimento imediato na contabilidade da “receita” obtida com o deságio
aplicado no plano de recuperação. “Ninguém faz isso”, diz. “Seria impossível
do ponto de vista do modelo financeiro.”
Os piores momentos das empresas, acrescenta, são os primeiros anos da
aprovação do plano, porque existe uma questão de capital de giro, de
necessidade de caixa em curto prazo e problemas de financiamento no mercado.
“Então ninguém paga imposto logo que aprova o plano”, afirma Nathalia. “O
que muitas têm feito é reconhecer os descontos aos poucos na contabilidade,
na medida em que as parcelas são pagas.”
Ela desconhece que uma empresa tenha sido autuada por conta disso. “Com
essa solução de consulta, provavelmente vai ter uma chuva de mandado de
segurança para impedir que a autoridade faça a tributação. Seria quebrar a
empresa no dia seguinte que aprova o plano”, diz Nathalia, acrescentando que
a interpretação da Receita Federal vai contra o princípio da lei de insolvência de
ajudar a empresa a se soerguer.
O tributarista Douglas Guidini Odorizzi, sócio do Dias de Souza Advogados,
afirma que já foi consultado por empresas sobre o assunto. Para ele, a tributação
nem deve ocorrer em alguns casos. “É uma premissa que está na solução de
consulta, mas entendemos que não se aplica em algumas situações, como nas
despesas que nunca foram reconhecidas pela empresa, porque nunca
impactaram o resultado”, diz.
Sobre o momento da tributação, Odorizzi defende um meio termo entre a
posição do Fisco e a do contribuinte que fez a consulta. Deveria ocorrer no
momento em que o credor escolhe a opção de pagamento. “Só pode ser
cobrado na data da homologação do acordo se o desconto foi aplicado naquele
momento, mas em muitos casos há abertura para se negociar individualmente,
então não se sabe quantos vão aderir em cada opção.”