11/08/2025

Justiça extingue recuperações judiciais consideradas abusivas

Por: Marcela Villar
Fonte: Valor Econômico
O aumento recorde de recuperações judiciais no país tem provocado o uso
abusivo do instituto. Empresas têm se aproveitado da onda, segundo
especialistas, para se beneficiar da suspensão das cobranças — o chamado
stay period, válido por até 360 dias — sem obedecer aos requisitos legais.
Isso tem feito o Judiciário encerrar ou suspender processos considerados
indevidos. Em um deles, por pouco não houve a decretação de falência.
Outros casos foram levados ao Ministério Público e Polícia Civil, por
indícios de fraude e omissão de informações contábeis.
Pelo menos 12 decisões recentes de São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso
extinguiram recuperações de empresas que sequer apresentaram documentação
básica para andamento do processo. Segundo especialistas, são casos de
litigância abusiva, um tipo de litigância predatória em que há desvio de
finalidade. Nas sentenças, há inclusive aplicação de multa, de até 20% do valor
da causa, por litigância de má-fé e “ato atentatório à dignidade da justiça”.
Em algumas ações, o devedor tem mais débitos extraconcursais (como aqueles
contraídos após o deferimento da reestruturação judicial) do que os submetidos
à recuperação, de modo que só serviriam para equalizar menos de 10% do total
da dívida. Ou seja, não caberia a recuperação judicial. O real intuito era de obter
a declaração de determinados bens como essenciais para a atividade empresarial,
o que na prática blinda este patrimônio durante o stay period.
Seria o caso da RRMG Transportes, julgado pela 2ª Câmara Reservada de
Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Para os
desembargadores, houve “indícios contundentes da utilização fraudulenta da
recuperação”. Isso porque mais de 90% dos créditos eram, na verdade,
extraconcursais, oriundos de financiamentos para a compra de caminhões e
outros veículos por alienação fiduciária. Só havia três credores concursais, com
dívida total de R$ 520 mil (7,5% do passivo).
“O pedido recuperatório dedica-se, exclusivamente, à declaração de
essencialidade de caminhões, para que fiquem com a recuperanda”, diz o
relator, desembargador Grava Brazil. Deferir esse tipo de recuperação,
acrescenta ele, “desacredita o instituto e traz insegurança jurídica e efeitos
nefastos para o mercado de crédito” (processo nº 2391019-43.2024.8.26.0000).
César Augusto Terra, do Gabardo & Terra Advogados Associados, que
atuou pelo Banco Mercedes Benz no recurso, afirma que a decisão é
emblemática. “Reforça a necessidade de interpretação técnica, criteriosa e
comprometida com a preservação da segurança jurídica.”
Em outros casos, empresas não têm listado todos os ativos, passivos e credores.
Segundo fontes, seria uma forma de barganha com fornecedores, que pedem
para serem deixados de fora da reestruturação. Assim, não se submetem aos
deságios dos planos para continuar operando com a empresa.
É o que teria ocorrido, segundo credores, na reestruturação bilionária do Grupo
Safras, levando à suspensão do processo por “falta de transparência
documental” e “irregularidades financeiras”. A suspensão foi mantida pelo
Superior Tribunal de Justiça (TutCautAnt 981). No Ministério Público do Mato
Grosso, segundo o órgão, há sete incidentes processuais para investigar indícios
de fraude, hoje suspensos.
Em nota ao Valor, o Grupo Safras afirma que teve deferida sua recuperação
judicial pelo juízo de Sinop (MT), após parecer favorável do perito judicial e do
Ministério Público e que, em liminar, a desembargadora Marilsen Adário [do
TJMT] suspendeu monocraticamente o processo. “O competente recurso para
apreciar o mérito dessa liminar já foi apresentado e o Grupo aguarda essa
decisão para os próximos passos de sua reestruturação”, diz.
Na reestruturação da rede de supermercados Grupo Belém, na cidade de
Mafra (SC), a empresa não apresentou documentos obrigatórios, como
balanços de fluxo de caixa, e não pagou a administração judicial do caso. O
pedido de recuperação foi feito em julho de 2024 e a juíza do caso deu
oportunidade para complementar a documentação, o que não foi feito.
Após perícia, verificou-se que nem todas as empresas conseguiriam se soerguer.
A solução foi extinguir a ação, com indicação para o Ministério Público apurar
possíveis crimes. Para a juíza Aline Mendes de Godoy, da Vara Regional de
Falências e Recuperações Judiciais e Extrajudiciais da Comarca de Concórdia,
houve violação do dever de transparência e boa-fé (processo nº 5007943-
43.2024.8.24.0019).
“A função social da empresa exige sua manutenção, mas não a qualquer preço”,
diz a magistrada. “A recuperação judicial não pode ser transformada em zona
de conforto ou escudo protetivo artificial, mas sim deve constituir-se em
verdadeira arena de reestruturação, com esforços diligentes e propositivos
voltados à superação da crise.”
A juíza Andréa Galhardo Palma, da 2ª Vara Regional de Competência
Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem do Foro Especializado
das 1ª, 7ª e 9ª RAJ, do TJSP, extinguiu oito casos similares no primeiro semestre.
“No curso do processo, verificou-se que a documentação era falsa, a lista de
credores não batia e a empresa começava a não remunerar o AJ [administrador
judicial]. A empresa não estava viável economicamente, que é um requisito para
a recuperação. Estava ganhando tempo com o stay [period] e se aproveitando
do stay”, afirma.
A juíza Maria Rita Dias, da 3ª Vara de Falências e Recuperação Judicial de São
Paulo, reforça que o melhor combate a esses casos é fazer um controle rigoroso
da documentação inicial. “O tribunal se preocupa em cumprir o sistema da lei
de recuperações e falências. O juiz não vai interferir no mérito. O controle do
abuso é feito pelos requisitos de admissibilidade da inicial, meramente formal e
processual”, diz.
Há ainda casos como o da transportadora Graneleiro, em Mirassol (SP). A
empresa afastou a consultoria Siegen — eleita pelos credores como
“watchdog”, para acompanhar as movimentações financeiras da empresa. O
plano previa que ela só poderia ser destituída ou substituída com anuência dos
credores. Mas em junho a Graneleiro a destituiu unilateralmente e vedou acesso
à sua contabilidade. Fundos alegam irregularidades com recebíveis.
Para o juiz André da Fonseca Tavares, da 2ª Vara do Foro de Mirassol, isso
“configura manifesto descumprimento do plano de recuperação" e é
“fundamento suficiente para a convolação da recuperação judicial em falência”.
Afirma que a conduta pode ser enquadrada como sonegação de informações, o
que em processos de insolvência pode implicar pena de dois a quatro anos e
multa.
Em liminar, determinou o retorno da consultoria ao caso, sob pena de decretar
a falência. A Graneleiro chegou a recorrer, alegando “má-fé” dos credores e
“inveracidade” das informações prestadas por eles. Porém, sem sucesso
(processo nº 1000878-95.2023.8.26.0358).
O juiz acatou um pedido de fundos de investimento em direitos creditórios
(FIDCs) representados pelo FZ Advogados Associados. Alegam que a empresa
se apropriou de R$ 9 milhões de recebíveis já pagos. Segundo Felipe Zago, do
FZ Advogados, a Graneleiro alterou a data de vencimento dos títulos, o que a
permitia receber em duplicidade — dos fundos e parceiros comerciais.
Desde junho de 2023, a administração judicial do caso, feita pela Laspro
Consultores, averigua denúncias de fraude e lesão a fundos via incidentes
processuais. Há ainda investigação no Ministério Público do Estado de São
Paulo (MPSP), iniciada com a mais recente decisão.
André Rocha, da consultoria Triunfae, diz que casos como esses são comuns
e existem previsões na Lei de Recuperação, nº 11.101/2005, para punir abusos
e fraudes, como afastar os gestores e desconsiderar a personalidade jurídica da
empresa para atingir bens dos sócios. “O devedor, quando pede recuperação,
usufrui de um favor legal, então tem que cumprir as ordens judiciais.”
Segundo a juíza e secretária-geral do Fórum Nacional de Recuperação
Empresarial e Falências (Fonaref) do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), Clarissa Tauk, “há uma percepção clara de crescimento dos casos de
recuperações judiciais que apresentam indícios de abuso de direito”.
Para ela, falhas na fiscalização, cenário econômico desafiador e maior
sofisticação das fraudes explicam essa alta. “A complexidade dos casos, a falta
de estrutura adequada em órgãos do Judiciário e a dificuldade em identificar
manipulações financeiras contribuem para que práticas abusivas passem
despercebidas.”
O Judiciário, acrescenta, tem atuado para coibir abusos, com a extinção de
processos. “A extinção sem convolação em falência pode ocorrer em situações
específicas, como ausência de apresentação do plano no prazo legal ou
desistência da devedora”, afirma. “Contudo, em casos de abuso, a tendência é
pela convolação em falência, para proteger os credores e evitar que a devedora
se beneficie da própria torpeza.”
Joelson Sampaio, economista da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca
que as recuperações judiciais abusivas se devem pelo comportamento das
empresas e de um mercado gigante de escritórios que apoiam a iniciativa, “que
se torna uma estratégia de tentar alongar e, até mesmo, suspender as dívidas
para, com isso, tentar obter uma sobrevivência maior, mais do que pelas
questões macroeconômicas, que hoje apontam para um cenário desafiador e
que tende a perdurar”.
O Valor procurou advogados e demais empresas mencionadas, que não deram
retorno até o momento.