09/12/2020

Investidor mente para ter acesso a produtos mais sofisticados

Por Júlia Lewgoy e Naiara Bertão
Fonte: Valor Econômico

Em julho deste ano, o advogado João (nome fictício) achou que valia a pena
mentir na corretora para ter acesso a um investimento específico. Assinou
a declaração atestando que é um investidor profissional, que possui mais
de R$ 10 milhões em aplicações financeiras, para investir em um fundo de
criptomoedas, um produto de alto risco e potencial de retorno, exclusivo
para esse público.
João não tem esse valor em ativos financeiros, mas queria diversificar sua
carteira e foi orientado a preencher o documento pelo seu assessor de
investimentos. “Ele não me disse que eu não poderia, nem que não
aconteceria nada. Só me falou que eu teria que assinar a declaração como
investidor profissional para ter acesso ao fundo”, conta.
“Dei uma pesquisada e não vi problema em fazer isso. Acho que essa
declaração não tem potencial de gerar grandes consequências e só serve
para as empresas se eximirem da responsabilidade pelos riscos que os
investidores estão tomando”, diz.
Após quase um semestre, João está satisfeito com o retorno do seu
investimento, apesar de saber dos riscos de perder dinheiro, e já investiu
em outros fundos de investimentos no exterior exclusivos para
profissionais. “A liberdade de poder assumir o risco é minha. Por que eu
simplesmente não assino uma declaração dizendo que eu estou assumindo
o risco em vez de ficar limitado a investimentos muito bons porque não
tenho R$ 10 milhões?”, questiona.
Em grupos on-line de pequenos investidores, volta e meia esse debate
surge. Obviamente, é raro alguém assumir publicamente que mentiu que é
qualificado, com acima de R$ 1 milhão, ou profissional para acessar
produtos. Enquanto alguns criticam a categorização de investidores e
defendem que nada acontece com quem mente, outros condenam a má-fé
e apontam possíveis problemas com o Código Penal e a Receita Federal.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) criou essas definições para
proteger pequenos investidores. Por trás da regra, está a ideia, questionada
por alguns, de que quem tem mais dinheiro tem mais conhecimento sobre
o mercado financeiro.
O único que pode se prejudicar com a mentira na declaração é o próprio
investidor, segundo especialistas. “A pessoa vai se expor a aplicações que
certamente não entende e vai comprar produtos que não são adequados
para ela”, diz William Eid, coordenador do Centro de Estudos em Finanças
da FGV. Se perder mais dinheiro do que esperava, o investidor perde o
direito de alegar na CVM ou na Justiça que não sabia dos riscos que estava
correndo.
Além disso, na teoria, quem mente pode ser acusado de crime de falsidade
ideológica, cuja pena pode ser de até cinco anos de prisão, segundo José
Luiz Rodrigues, especialista em regulação do mercado financeiro e sócio da
consultoria JL Rodrigues & Consultores Associados. Ao declarar que é
qualificado ou profissional, a pessoa está prestando uma informação falsa.
“Além de estar se colocando em risco, o investidor que mente está
cometendo um crime. E isso é problema dele, não da corretora.”
Na prática, porém, a mentira na declaração não é crime, na visão de alguns
advogados. Isso porque, para a história ir parar na Justiça, o investidor
precisaria reclamar que não teve conhecimento sobre os riscos ou
precisaria ser acusado de crime pelo Ministério Público, após uma
denúncia, ou pela própria corretora. Não faz sentido, segundo esse grupo
de especialistas, já que as empresas estão protegidas com a declaração
assinada e não têm prejuízo com a mentira.
“Não vejo isso como um problema criminal, salvo se a corretora
processasse o cliente. Mas a corretora não tem nada a ganhar com isso”,
diz o advogado Samir Choaib, especializado em planejamento sucessório e
tributário. Segundo ele, o risco de o investidor ter problemas com a Receita
Federal também é pequeno, já que o investidor qualificado ou profissional
não tem nenhum benefício fiscal. “Sendo qualificado, profissional ou não,
se tiver imposto a pagar, o contribuinte vai pagar.”
Em 18 anos de carreira, o advogado Felipe Hanszmann, sócio da área de
societário do escritório Vieira Rezende, nunca viu nenhum caso desses ir
parar na Justiça. “É um crime formal, mas quem buscaria essa
responsabilização e iria contra o investidor para protegê-lo? É uma situação
esdrúxula do ponto de vista prático, não consigo ver a máquina estatal
fazendo isso”, afirma. Ele entende que a CVM precisa colocar travas para
informar investidores dos riscos, mas acredita que volume de dinheiro não
é o parâmetro mais eficiente para medir conhecimento.
Nas corretoras, é incomum flagrar investidores que mentiram. Na XP, Julia
Duarte, gerente do jurídico, diz que não se lembra de ter flagrado alguma
mentira depois de o cliente assinar a declaração de qualificado ou
profissional.
José Ramos Rocha Neto, presidente do fórum de distribuição da Anbima,
diz que manter diferentes classificações para investidores com perfis de
risco distintos faz sentido para protegê-los. Porém, segundo ele, já existem
grupos de trabalho na entidade para discutir melhorias nessas
classificações.
Daniel Maeda, superintendente de relações com investidores institucionais
da CVM, confirma que não há punição para o investidor que mente. Mas
diz que ele perde o direito de reclamar de que algo está errado com o seu
investimento.
As plataformas de investimentos são obrigadas a analisar o perfil do
investidor desde 2013, por meio da Instrução CVM 539. Mas, não precisam
checar as informações, cruzando a declaração com dados do Imposto de
Renda, por exemplo. A CVM não pode se ater a quem não declara a sua
situação real, nem impor mais custos e burocracias às empresas, completa.