07/08/2024

Empresas em crise viram alvo de aquisição por ‘valor simbólico’ e assunção de dívida

Por: Fernanda Guimarães e Mônica Scaramuzzo
Fonte: Valor Econômico
Empresas com graves problemas financeiros e que passam por reestruturação
estão sendo vendidas por valores simbólicos, operação na qual o comprador
assume as dívidas da companhia “de porteira fechada”. Um dos casos mais
recentes no país foi o da varejista Dia, em recuperação judicial, negociada por
€ 100. O grupo espanhol tentou originalmente vender o ativo, antes de entrar
com pedido na Justiça de proteção aos credores.
A empresa de biotecnologia Superbac, que recebeu investimentos do fundo de
private equity (que compra participação de empresa) da XP, também passou
para uma empresa especializada em reestruturação, apurou o Valor. Outra foi
a rede de calçados Mr. Cat, investida do fundo HIG, disseram fontes.
Procuradas, tanto a XP, quanto a HIG, preferiram não comentar.
O número de exemplos tem crescido. A Rodovias do Tietê, se soma à lista - foi
vendida por valor simbólico de R$ 1, após um acordo costurado pela
reestruturadora Starboard. Um interlocutor da gestora explicou que os
debenturistas se organizaram “em uma casca”, assumiram as dívidas da
companhia e criaram uma governança interina enquanto o poder concedente
não aprova a operação.
“Esse tipo de operação no Brasil tem crescido porque o mercado tem se
sofisticado e a legislação evoluído, além do entendimento, tanto do acionista
como do credor, de que, eventualmente, essa pode ser uma alternativa melhor
do que uma simples repactuação de dívidas”, afirma Renato Azevedo, sócio da
gestora Latache.
Segundo fontes de mercado, essa tem sido uma estratégia, feita por algumas
casas, como forma, por exemplo, de ajudar fundos a saírem de investimentos
problemáticos - e que demandariam muita energia em um processo de
reestruturação. Trata-se, na maioria dos casos, de uma venda a “porteira
fechada”, o que significa na prática a transferência não só dos ativos, mas
também de passivos e outras obrigações.
Daniel Vorcaro, presidente do banco Master, explica que a montanha-russa da
economia, efeitos da pandemia, além das crises institucionais no país, afetaram
muitas companhias que tiveram de passar por reestrutruração. O Master,
segundo ele, participou de compras de companhias por valor simbólico, com
assunção das dívidas, por meio do banco ou de veículo financeiros da
instituição.
O banqueiro cita importantes negócios nesse contexto. Além da varejista Dia,
por meio do fundo MAM (sem participação do banco), há outras empresas
importantes adquiridas pela instituição, como Veste (ex-Restoque), dona de
importantes marcas, e também a Metalfrio. “São empresas bem conceituadas,
mas que tiveram de passar por reestruturação.”
Vorcaro diz que o que está por trás da venda por um valor simbólico é todo
um processo de reestruturação de capital sofisticado para equacionar a dívida
da empresa e colocá-la em rota de novo crescimento.
Em outros casos, segundo interlocutores, o ativo estressado se trata do último
a ser desinvestido dentro de um portfólio. Dentre outro caso recente de um
fundo de private equity, o Pátria se desfez ano passado da problemática Tenco,
dona de shoppings no interior.
Gestoras como a Vega, Starboard e Ivix têm feito negócios do gênero, disseram
fontes. As reestruturadoras de ativos em situação especiais Makalu e Prisma
também têm colocado na mesa esse tipo de transação, apurou o Valor.
Um dos pioneiros a fazer esse tipo de negócio, Gilberto Zamcopé, que criou o
fundo OrderVC, já coleciona casos de sucesso em sua trajetória. Há 18 anos,
por exemplo, comprou por R$ 10 milhões a Wap, conhecida por suas lavadoras
de alta pressão, muito endividada na época. Atualmente, após a reestruturação,
seu valor é estimado em R$ 3,5 bilhões. “Ela era uma empresa que tinha
falhado. Carregar a dívida no Brasil é algo muito duro”. Para reerguer a empresa,
além de um ajuste na estrutura de capital, que precisou de uma injeção de
dinheiro novo, a reestruturação passou pela área administrativa, com a decisao,
por exemplo, de terceirizar a produção na China.
Zamcopé diz ter desenvolvido ao longo dos anos a “teoria da ordem” e que ela
tem dado certo. Neste ano, colocou mas uma empresa em desordem para
dentro, a Acquion, fabricante de colágeno. “Eu comprei algumas empresas em
desordem, não porque é melhor, melhor é comprar em ordem, mas uma em
ordem custa muito caro”, afirma. Neste ano, com os juros sufocando muitas
empresas, a fila de oportunidades tem crescido, conta. “Toda vez que existe
uma crise de juros alto isso acontece. Os juros é um dos fatores para a empresa
entrar em desordem, mas há ainda a liderança tóxica, problemas de sucessão,
de mercado, estrutura de capital, concorrência e tecnologia”, explica.
Olhamos setores que a gente conhece para saber o risco que corremos”
— Luiz Prazo
Com essa demanda em alta, algumas gestoras e consultoria têm se debruçado
sobre o tema. Na Ivix, por exemplo, foi montado um time especializado em
reestruturação para trazer para dentro de casa os casos. Segundo o sócio da Ivix,
André Berenguer, é natural que o número de casos aumente em momentos mais
desafiadores na economia e após um período mais pujante de aquisições e
crescimento das empresas, como foi na pandemia, momento em que houve
uma grande liquidez global e um cenário de juros baixíssimos em todo o mundo.
Segundo Berenguer, hoje são, essencialmente, três grupos que procuram a Evix
com essa demanda. A primeira são fundos de private equity que precisam
desinvestir um ativo problemático, já no fim do ciclo de vida do fundo, que
precisa retornar capital aos cotistas.
Outra demanda, segundo Berenguer, vem também desses mesmos fundos, que
buscam parceiros para ajudar em empresas de dentro do portfólio que precisam
de reestruturação - mas o fundo ainda tem tempo antes de desinvestir. Outra
modalidade que vem sendo observada, aponta o executivo, vem das instituições
financeiras que acabam se tornando acionistas de empresas em dificuldades -
por conta de conversão de dívidas em ações - e buscam um parceiro
especializado em “turnaround”.
Luiz Prado, sócio da Makalu, afirma que alguns casos começaram,
recentemente, a aparecer na gestora. O executivo frisa, no entanto, que é
necessário fazer a lição de casa para não haver um risco não mapeado pela
gestora. “Olhamos setores que a gente conhece, para saber o risco que está
correndo”, diz. Segundo ele, um dos pontos que precisa ser analisado é que
nesse tipo de ativo existe a necessidade de se estruturar o ativo em si, mas
também o passivo. “Normalmente se compra por R$ 1, mas está implícito se
assumir as dívidas”, comenta.
Fontes consultadas pelo Valor afirmaram que grupos estrangeiros com decisão
tomada de sair do Brasil têm buscado essa alternativa para conseguir se desfazer
de ativos no país - caso, por exemplo, do Dia. Em muitos casos, explicou uma
fonte de mercado que olha esse tipo de negócio, toda a negociação ocorre
apenas com um representante da companhia no país - a administração em si já
não está mais no país. “Nesse momentos é possível conseguir bons negócios”,
afirmou, na condição de anonimato.
Globalmente, esse nicho é chamado de “órfãs corporativas”, que engloba
empresas que decidem se desfazer de uma divisão de negócios que deixa de
fazer sentido ou a saída de uma geografia.