Coisa julgada: Juiz isenta empresa de multa por pagar tributo após julgamento do STF
Por: Carolina Unzelte
Fonte: Jota Tributario
A Justiça Federal de Santa Catarina concedeu mandado de segurança à empresa
JCS Brasil Eletrodomésticos Ltda., determinando o cancelamento de multas
sobre valores de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) recolhidos com
atraso, pelo fato de a empresa ter uma decisão favorável, transitada em julgado,
que a isentava de recolher o imposto. A Fazenda já recorreu da decisão.
A decisão foi proferida pelo juiz Eduardo Didonet Teixeira, da 9ª Vara Federal
de Florianópolis, com base na definição dos Temas 881 e 885 de repercussão
geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sobre os limites da coisa julgada.
No julgamento de mérito, o STF definiu que um contribuinte que obteve uma
decisão judicial favorável com trânsito em julgado permitindo o não pagamento
de um tributo perde automaticamente o seu direito diante de um novo
entendimento do STF que considere a cobrança constitucional.
Já em abril do ano passado, ao julgar os embargos, o Supremo decidiu que não
cabe a imposição de multa para contribuintes que, respaldados por decisões
judiciais anteriores, deixaram de recolher tributos posteriormente considerados
devidos. No caso concreto, a decisão do STF versava sobre o recolhimento da
CSLL.
A nova decisão da Justiça federal catarinense abre precedente para contribuintes
que deixaram de pagar outros tributos com respaldo em decisões judiciais
transitadas em julgado, mas que foram posteriormente revertidas por
entendimento do STF. “É um desdobramento da modulação da coisa julgada
que não estava no radar, tem bastante empresa nessa situação”, diz Felipe
Omori, do KLA Advogados, que representa a JCS Brasil no caso. “E levanta
outras questões sobre a operacionalização com o Fisco”.
Vai e vem
O caso julgado em Santa Catarina tem origem em uma decisão favorável obtida
pela JCS Brasil Eletrodomésticos em 2014, que a isentava do pagamento de IPI
na revenda, internamente, de produtos importados. Na época, a empresa obteve
decisão transitada em julgado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que afastou
a cobrança do tributo. Essa discussão já se arrastava desde o início dos anos
2000, segundo Omori, e a posição que prevaleceu era a de que, como não havia
industrialização entre a importação e a revenda, não deveria incidir IPI
novamente.
Porém, em 2020, o STF firmou novo entendimento sobre a questão ao julgar o
Tema 906 de repercussão geral, declarando a constitucionalidade da cobrança
do IPI nessas operações. “O STF entendeu pela linha da isonomia: já que a
revenda de produto nacional industrializado está sujeita a IPI, para não criar
diferenciação entre os produtos, declarou-se a incidência de IPI também na
revenda de importados”, explica Omori. “É uma solução não muito jurídica,
mas política e econômica”.
Depois, em 2023, o Supremo consolidou, com os Temas 881 e 885, a tese de
que decisões individuais favoráveis a contribuintes perdem automaticamente a
eficácia diante de julgamento posterior da Corte em sentido contrário, desde
que este tenha repercussão geral reconhecida.
Ao antecipar-se à possibilidade de cobrança por parte da Receita Federal, a
empresa optou por quitar os tributos, devidos desde dezembro de 2020 (mês
seguinte ao Tema 906 do STF), em 2023. Assim, pretendia aproveitar o
benefício da denúncia espontânea – mecanismo que permite a regularização de
débitos sem a aplicação de penalidades, quando o contribuinte se antecipa à
cobrança da Receita para quitar os débitos.
No entanto, a Receita Federal não reconheceu o afastamento das multas sobre
os tributos referentes ao período de novembro de 2021 a junho de 2022,
alegando que parte do pagamento foi realizado por compensação tributária, o
que inviabilizaria a aplicação da denúncia espontânea.
Segundo Omori, a argumentação que sustentava essa negativa vinha do artigo
138 do Código Tributário Nacional (CTN), que descreve a denúncia espontânea
dentro do contexto de “pagamento”. No ano passado, o Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) aprovou súmula que afirma que a
compensação não equivale a pagamento para fins de denúncia espontânea. “A
Receita tem um entendimento bem restrito sobre o tema”, diz Omori.
Mandado
Diante da negativa da Receita, a empresa ingressou com mandado de segurança
pedindo o afastamento das multas. Paralelamente, no ano passado, o STF
determinou que não há incidência de multa sobre o tributo a ser pago pelo
contribuinte cuja decisão individual tenha sido superada por entendimento
posterior do STF — isso no contexto da CSLL. Esse entendimento, que foi
dado em sede de embargos de declaração do julgamento dos Temas 881 e 885,
ensejou um novo pedido de mandado de segurança por parte da JCS Brasil, por
analogia.
Assim, o juiz Eduardo Didonet Teixeira, da 9ª Vara Federal de Florianópolis,
concedeu a segurança, determinando o cancelamento das penalidades e
ressaltando que "não há que se falar em má-fé, dolo ou culpa por parte de um
sujeito passivo no caso dele (sic) possuir em seu favor uma decisão judicial com
trânsito em julgado".
Segundo o magistrado, a decisão do STF nos embargos de declaração dos
Temas 881 e 885 estabeleceu que "torna-se imperativo afastar, como regra geral,
a imputação de multas tributárias de qualquer natureza" nos casos em que a
mudança jurisprudencial do STF resultou na exigibilidade retroativa de tributos.
Outro argumento dado por Didonet foi a impossibilidade de penalizar um
contribuinte que seguiu decisão judicial válida à época: "Se havia ordem judicial
a proteger o contribuinte, não há sentido em lhe aplicar uma penalidade pelo
não recolhimento do tributo".
O juiz também afirmou que o pagamento foi realizado antes da publicação final
do acórdão dos Temas 881 e 885, o que reforça o direito da empresa de não ser
penalizada. "A impetrante estava albergada pela sua coisa julgada individual,
que perdurou com total eficácia até quando o STF estabeleceu a quebra
automática de decisões transitadas em julgado posteriormente revertidas por
julgamentos de controle de constitucionalidade."
A decisão foi tomada no mandado de segurança 5012260-66.2024.4.04.7200.
Mesmo que a União não tivesse apelado, a decisão da 9ª Vara Federal de
Florianópolis, como está sujeita ao duplo grau de jurisdição pelo reexame
necessário, seria automaticamente julgada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª
Região (TRF4). Caso o entendimento seja mantido, a decisão poderá influenciar
outras ações semelhantes, criando um precedente relevante para empresas que
passam por situações análogas. A modulação dos Temas 881 e 885 pelo STF já
afastava a cobrança retroativa de tributos, mas a isenção de multas reforça a
segurança jurídica para os contribuintes nesses casos. Procurada, a Receita
Federal afirmou que não se manifesta sobre decisões judiciais.
Coisa julgada
O caso reacende a discussão sobre os limites da coisa julgada, um princípio
fundamental do Direito para a estabilidade das decisões. No contexto tributário,
há uma particularidade que complica o cenário: os tributos de trato sucessivo,
aqueles que incidem de forma periódica e contínua. Alguns exemplos são a
CSLL, PIS, Cofins, ICMS, IPI, entre outros.
Antes dos Temas 881 e 885, havia divergências sobre o alcance da
coisa julgada nesse tipo de tributos. Alguns precedentes indicavam que uma
decisão favorável ao contribuinte poderia permanecer válida indefinidamente,
enquanto outros defendiam que uma mudança posterior na jurisprudência
poderia fazer cessar efeitos futuros. O STJ, por exemplo, já vinha adotando um
posicionamento de que a coisa julgada em matéria tributária não poderia
impedir que novas normas ou interpretações fossem aplicadas a fatos geradores
futuros.
Com os Temas 881 e 885, o entendimento consolidado foi de que, se o
Supremo, em sede de repercussão geral, decidir que um tributo é constitucional,
as decisões anteriores que diziam o contrário perdem eficácia para o futuro. Isso
ocorre automaticamente. No entanto, a cobrança retroativa ainda deve respeitar
os princípios anteriores. Isso significa que contribuintes que possuíam decisões
favoráveis perderam essa proteção, mas não poderiam ser cobrados
retroativamente de forma ilimitada.
“A sentença ajuda a trazer um pouco mais de segurança, mas não resolve a
totalidade da questão”, diz Omori. “Estamos há dez anos acompanhando o
tema na pauta do STF, e ainda há dúvidas. Como operar em um ambiente
assim?”.