Cade debate fim da punição de pessoas físicas por cartel
Por: Guilherme Pimenta
Fonte: Valor Econômico
Voltou a debate no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a
tese de não punição de pessoas físicas que cometem cartel - combinação de
preços entre concorrentes -, por considerarem que o órgão antitruste tem sido
lento para punir administradores e terceiros. Reforça esse movimento ainda o
fato de, na maioria desses casos, as multas não serem pagas. Assim, caberia
somente ao Judiciário penalizar as pessoas físicas no âmbito criminal.
O tema, que é polêmico na comunidade antitruste, ressurgiu a partir de um voto
do conselheiro Carlos Jacques, proferido há algumas semanas, em um processo
que apurava um cartel do segmento de cimento, com três pessoas físicas
acusadas.
Apesar de condenar dois dos envolvidos, um acusado foi beneficiado, já que
seu processo já estava prescrito. Os fatos no processo ocorreram entre os anos
de 2006 e 2007. A investigação foi instaurada em 2014 e o julgamento foi
realizado este ano, ou seja, quase 20 anos depois.
“Entendo ser necessária uma reflexão mais aprofundada sobre os custos
envolvidos na persecução de pessoas físicas envolvidas em cartéis e seus
potenciais ganhos, incluindo-se, principalmente, o poder dissuasório da
autoridade de defesa da concorrência”, disse o conselheiro no voto.
Segundo ele, o caso serve para convidar o Cade “a fazer uma reflexão sobre se
os esforços empreendidos na investigação e condenação de pessoas físicas
envolvidas em cartel realmente fazem sentido ou se seria algo que deveria ser
deixado para a esfera penal”.
“Mudanças na redação da lei teria como benefícios não somente a melhor
alocação de recursos da autoridade concorrencial, mas também evitar longas
discussões sobre bis in idem [quando se pune mais de uma vez a mesma
conduta] e incompatibilidade de decisões administrativas e penais”, afirmou.
Ao Valor, Jacques falou que seu voto trouxe à tona uma reflexão necessária, ao
reconhecer que seria preciso uma alteração legislativa. Também pontuou que,
em uma eventual mudança, o Ministério Público deveria focar na punição de
pessoas físicas.
A tese de punir somente pessoas jurídicas no Cade surgiu há alguns anos, com
a ex-secretária de Direito Econômico Ana Paula Martinez, hoje sócia da área
concorrencial do Levy & Salomão. Ela entende que, assim, haveria maior
eficiência e celeridade nos processos no órgão, com preservação da dissuasão
da conduta.
Em entrevista ao Valor, ela afirmou que seria necessária uma mudança na
legislação, já que é expresso que o Cade deve investigar e, se preciso, punir
também as pessoas físicas que cometem cartel. Com base na Lei nº 8.137, de
1990, a prática é passível de condenação pelo sistema penal, que funciona de
forma independente da esfera administrativa.
Ana Paula apontou o risco de ser punido duas vezes pelo mesmo fato e de
serem proferidas decisões conflitantes como reflexos decorrentes da
investigação de pessoas físicas pelo Cade. “Não é raro haver processos de
cartéis que investigam mais de cinquenta pessoas, entre físicas e jurídicas.
Especialmente em casos internacionais com impacto no Brasil, há grande
dificuldade de citar as pessoas físicas, o que retarda o processo”, acrescentou.
Além disso, ela comentou que, na maioria dos casos relevantes, vão surgindo
os chamados “processos filhotes”. São desmembramentos do processo
principal em virtude da dificuldade de citar os envolvidos. Os casos mais
complexos têm chegado a durar 15 ou até mesmo 20 anos.
A advogada contrasta esses casos com o do “cartel das britas”, no qual apenas
pessoas jurídicas foram investigadas pelo Cade. O processo teve duração de
dois anos, entre instauração e julgamento em 2005. As pessoas físicas
enfrentaram unicamente investigação penal.
Outra dificuldade reside no recolhimento das multas impostas pelo Cade e em
como assegurar que as empresas não acabem arcando com os valores, o que
reduziria o esperado efeito disuasório, ela falou. Recentemente, o Valor
mostrou que o Cade elabora uma norma para oferecer algumas condições
favoráveis para ampliar o pagamento de multas aplicadas a pessoas físicas.
Apesar da previsão legal, Ana Paula lembrou que o órgão antitruste tem
discricionariedade para estabelecer filtros para investigar e punir pessoas físicas
no âmbito administrativo. “A Superintendência-Geral e o próprio Tribunal
estão atentos a essa necessidade de refinar os critérios de inclusão da pessoa
física no polo passivo”, disse.
Discordo da tese porque a persecução penal não costuma ser muito efetiva”
— Ana Frazão
Em 2020, por exemplo, houve debate entre os conselheiros se deveria haver
limitação da aplicação da lei só aos administradores das empresas. Mas a maioria
entendeu que a lei se aplica a todas as pessoas físicas, sem distinção.
Integrantes da autoridade antitruste, nos bastidores, apontam para a
complexidade do tema, mas reconhecem que é possível estabelecer filtros
próprios em alguns casos. Nesse sentido, há o recente processo administrativo
instaurado contra mais de 50 empresas multinacionais, que apura infrações à
ordem econômica no mercado de trabalho, com suposto compartilhamento
ilícito de informações sensíveis relacionadas a benefícios.
Nesses processos, segundo os autos públicos, não há pessoas físicas acusadas,
somente as empresas envolvidas. “Esse caso mostra um esforço muito louvável
do órgão para racionalizar o sistema. Dito isso, apenas a alteração legislativa
traria a segurança jurídica almejada”, pontuou Ana Paula Martinez.
Ana Frazão, ex-conselheira do Cade, professora da UNB e sócia fundadora de
escritório que leva seu nome, discorda da tese ao defender que pessoas naturais
envolvidas em ilícitos antitruste possam responder igualmente na seara
administrativa, principalmente porque, na visão dela, “a persecução penal não
costuma ser muito efetiva”.
“Dito isso, acho razoável que, considerando a limitação de recursos do Cade e
as complicações que podem decorrer da presença de pessoas físicas nas
investigações, seja priorizada, por questões pragmáticas, a persecução das
pessoas jurídicas", ponderou.
Em sua visão, também não é necessário alterar a lei do Cade para impedir a
persecução de pessoas físicas, já que a lei “permite ao Cade decidir se e quando
vale a pena processar igualmente as pessoas naturais”.
“Da forma como a legislação se encontra, o Cade tem autonomia institucional
e todos os mecanismos para tomar essa decisão, inclusive para o fim de priorizar
a persecução apenas contra pessoas jurídicas”, complementou.
Ticiana Lima, sócia do VMCA Advogados, vê a tese com bons olhos. “Da
perspectiva de buscar maior celeridade das decisões essa seria uma opção que,
de fato, faz todo sentido”, disse. “Alguns processos no Cade demoram meses,
se não anos, apenas na fase de citação das pessoas dado o número grande de
representados em alguns casos que envolvem muitas pessoas físicas.”
Por outro lado, alertou a especialista, “é preciso olhar para os problemas da
efetividade do próprio Judiciário quando se trata da apuração de crime de cartel,
que são grandes”.
Como as multas do Cade são altas, Ticiana também ponderou que, com a
possibilidade de punição às pessoas físicas pelo órgão antitruste, elas “podem
se sentir mais incentivadas a denunciar cartéis e colaborar em acordos de
leniência no Cade quando se trata de evitar uma enorme multa para elas
próprias”.