Bens e direitos digitais, além da herança, são essenciais na reforma do Código Civil
Por: Sérgio Rodas
Fonte: Consultor Jurídico
Bens e direitos digitais, além da herança deles, são essenciais na reforma do
Código Civil. Foi isso o que afirmaram especialistas no assunto na última sextafeira
(11/4), no terceiro encontro da série “Reforma do Código Civil em Foco”,
ocorrido na FGV do Rio de Janeiro. O anteprojeto da reforma do código foi
apresentado em abril de 2024 por uma comissão de juristas criada pelo
Senado.
Desembargadora Jaqueline Montenegro e o ministro Luís Felipe Salomão
debatem reforma do Código Civil na FGV-Rio
O evento tem a coordenação do ministro Luis Felipe Salomão, vicepresidente
do Superior Tribunal de Justiça, presidente da comissão de juristas
para a reforma do Código Civil e coordenador da FGV Justiça.
Salomão afirmou que em breve deve ser constituída uma comissão especial para
analisar o anteprojeto no Senado. A expectativa é que o texto possa ser votado
pelo Senado e pela Câmara dos Deputados ainda em 2025.
“O Código Civil é a constituição do cidadão comum. Ele cuida do dia a dia,
desde antes do nascimento da pessoa natural e da pessoa jurídica, passando pelo
nascimento, pelos contratos que ela realiza, pelas empresas que ela constitui,
pelas uniões que ela desenvolve, até a sua morte, e para além da morte também,
com a sucessão. É a norma da cidadania”, apontou o ministro.
Herança digital
A ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, lançou luz sobre
um dos temas mais complexos e ainda pouco regulamentados do Direito Civil
contemporâneo: a herança digital, que é regulada pelo anteprojeto do novo
Código Civil.
Falando remotamente, a magistrada compartilhou reflexões sobre os desafios
jurídicos que emergem com o advento da era digital — especialmente no
contexto de inventários e sucessões.
“O falecido não deixa senha, não nomeia administrador. E nós, juízes, temos o
dever de entregar todos os bens aos herdeiros. Mas e quando esses bens são
digitais, intangíveis e, por vezes, carregam segredos que podem causar dor?”,
provocou Nancy.
Nova categoria de bens
A ministra destacou a ausência de uma legislação específica que trate dos bens
digitais no Código Civil, no Marco Civil da Internet ou em outras normas
vigentes. Ela defendeu que a era digital não só ampliou o espectro dos direitos
da personalidade como também introduziu uma nova categoria de bens
jurídicos — os bens digitais.
Esses bens, segundo ela, podem ser classificados como patrimoniais, com valor
econômico mensurável (como criptomoedas ou arquivos valiosos); existenciais,
ligados a direitos da personalidade (como diários, mensagens, fotos íntimas); e
híbridos, com aspectos patrimoniais e existenciais simultâneos.
Andrighi foi além: propôs uma classificação quanto à transmissibilidade,
dividindo os bens digitais em transmissíveis (que podem ser herdados) e
intransmissíveis (que não devem ser repassados aos herdeiros por envolverem
aspectos íntimos ou cláusulas contratuais de sigilo).
A ministra compartilhou dilemas concretos enfrentados por juízes em
inventários digitais. “Cartas de amor a amantes desconhecidos, revelações sobre
doenças, contratos sigilosos. Será que o falecido gostaria que isso fosse entregue
à família?”, questionou.
Ela apontou que, por força do princípio da saisine — que assegura aos herdeiros
o direito a todos os bens deixados pelo falecido — o juiz se vê diante de uma
contradição: como cumprir esse princípio se parte da herança pode causar dor,
humilhação ou violar a intimidade de terceiros?
Inventariante digital
Para lidar com a complexidade dos bens digitais, Andrighi sugeriu a criação de
um incidente processual específico, denominado “incidente de identificação,
classificação e avaliação dos bens digitais pós-morte”. Esse incidente, tramitaria
de forma apensada ao inventário principal e permitiria, segundo ela, que os bens
físicos e tradicionais fossem partilhados normalmente, enquanto os digitais
passariam por análise própria.
Para isso, ela propõe a nomeação de uma nova figura técnica: o inventariante
digital, que atuaria como perito judicial com acesso autorizado ao conteúdo
digital do falecido. Esse profissional seria o responsável por elaborar um
relatório minucioso sobre o que foi encontrado no ambiente virtual, permitindo
ao juiz decidir, com mais segurança, o que deve ou não ser transmitido aos
herdeiros.
Desafios contemporâneos
A desembargadora Jaqueline Montenegro, do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, destacou a distância crescente entre a legislação civil em vigor e a
realidade da sociedade contemporânea.
“Temos hoje um código que nasceu velho”, afirmou a magistrada, referindo-se
à atual legislação civil, escrita na década de 1970 e promulgada apenas em 2002.
Para ela, o Código já não oferece respostas adequadas às novas demandas
sociais, tecnológicas e identitárias, resultando em insegurança jurídica e desafios
práticos para juízes e operadores do Direito.
Jaqueline destacou que as transformações sociais — do empoderamento
feminino às novas configurações familiares — exigem uma revisão profunda da
legislação civil. Segundo ela, o Código Civil atual foi elaborado sob premissas
ultrapassadas, como o casamento indissolúvel e a figura de uma mulher sem
autonomia econômica. “Não somos mais a mulher do código de 2002”,
pontuou.
Entre os pontos positivos da proposta de reforma do Código Civil analisada no
evento, a desembargadora ressaltou o fortalecimento da autonomia da vontade
no Direito Sucessório, a desburocratização dos procedimentos de família e o
reconhecimento da capacidade civil de pessoas com deficiência. Ela também
apontou avanços na regulação da reprodução assistida e nas questões
envolvendo direitos digitais — embora tenha reconhecido que esses ainda
trazem muitas “perplexidades”.
Direitos digitais
Para Jaqueline, é preciso distinguir, por exemplo, os direitos digitais existenciais
— como perfis em redes sociais — dos patrimoniais, como contas monetizadas
e criptomoedas, que hoje compõem o espólio de muitos cidadãos. “Estamos
diante de uma nova realidade que o código antigo não prevê. Precisamos
urgentemente estabelecer regras claras para o mundo digital pós-morte”,
defendeu.
Apesar dos avanços apontados, a desembargadora reconheceu que há lacunas
importantes no texto em discussão, como a ausência de um tratamento mais
profundo para questões de gênero, famílias plurais e uniões poliafetivas. “A
questão do poliafeto precisa ser enfrentada. Essa é uma realidade. Tirando a
pauta de valores daqui ou de acolá, ela está posta”, declarou.
A magistrada destacou ainda o papel de juristas que se dedicam à reforma legal
como uma forma de doação à sociedade. Ela concluiu afirmando que uma
reforma ideal deve integrar valores constitucionais aos princípios clássicos do
Direito Civil: eticidade, socialidade e operabilidade.