Arrecadação com cartórios dispara e atinge R$ 3,5 bilhões em 2024
Por: Beatriz Olivon e Jéssica Sant'Ana
Fonte: Valor Econômico
As iniciativas da Receita Federal para estimular o cumprimento de
obrigações tributárias pelos donos de cartórios resultou em uma
arrecadação de R$ 3,5 bilhões no ano de 2024 - um aumento de 94,4% em
relação a 2020. Com a chamada “Operação Cartório”, desde 2021, conforme
aponta o Relatório Anual de Fiscalização do órgão, “o nível de
conformidade vem crescendo de forma consistente” no setor.
Para dar continuidade aos resultados positivos da medida, está prevista para este
ano a implementação de Livro Caixa Digital para titulares de cartórios. A nova
obrigação contemplará a escrituração do livro-caixa, de interesse da Receita
Federal, e do Livro Diário Auxiliar de Receitas e Despesas, de interesse da
Corregedoria Nacional de Justiça e das Corregedorias Gerais dos Tribunais de
Justiça dos Estados e do Distrito Federal.
Por enquanto, a Receita tem enviado comunicados e cartas para orientar sobre
os valores a serem pagos, de forma similar ao que faz em outros setores em que
identifica um flanco no pagamento de tributos, como em relação aos
proprietários rurais. Para os técnicos, na área rural, pode haver uma genuína
confusão sobre como declarar os tributos, o que não seria exatamente a situação
dos cartórios.
A “Operação Cartório” é considerada pelo Fisco como um dos exemplos mais
bem-sucedidos da nova cultura da Receita, de investir em orientação do
contribuinte e medidas de facilitação dos pagamentos dos tributos, antes de
partir para o controle coercitivo - que inclui autuações e aplicação de sanções,
como multas. A opção por um acompanhamento mais próximo desse setor foi
feita devido à sua elevada capacidade de gerar arrecadação para os cofres da
União.
Os cartórios têm uma situação peculiar que pode explicar o aumento apontado
na arrecadação, segundo Michel Berruezo, sócio do escritório Pellegrina e
Monteiro, que atua desde 2018 assessorando cartórios. Todas as obrigações
tributárias são apontadas na pessoa física, explica ele, mesmo as relações
trabalhistas ou previdenciárias. A apuração do Imposto de Renda é feita por
meio do livro-caixa e é paga via carnê-leão, a partir do lançamento mensal de
despesas e receitas. Por volta do ano de 2015, diz o advogado, as corregedorias
dos tribunais de justiça, que fiscalizam o serviço notarial, começaram a trocar
informações com a Receita a respeito.
“Muitas vezes, as despesas pessoais do tabelião se confundiam com despesas
operacionais do cartório”, afirma Berruezo. Um exemplo é a despesa com o
automóvel usado pelo tabelião para ir ao cartório ou a despesa com a faculdade
de um cartorário para estudar Direito. E muitos cartórios não tinham
digitalizado o livro-caixa, mesmo no ano de 2019. “Até 1988, nos cartórios valia
o regime hereditário. Essas administrações têm práticas enraizadas e uma
confusão de custos e despesas que é até natural na pessoa física”, diz.
Empresas têm disputas similares às dos cartórios com a Receita Federal quanto
a despesas ou quais situações geram créditos. O que torna a cobrança dos
cartórios mais efetiva é que eles também são fiscalizados pela corregedoria e
ficam com medo de punições além-Fisco, sendo a mais grave delas a perda do
cartório.
Além da dedução de despesas, há uma questão com a folha de pagamento,
segundo Berruezo. Hoje, os cartórios contratam pelo regime celetista, mas
ainda podem ter contratados pelo modelo pré-88, em regime estatutário
híbrido, pelo qual não se recolheria a contribuição previdenciária. “Teve uma
enxurrada de autuações fiscais em 2024. Isso porque tem estatutários com
carteiras importantes e remunerações que chegam a seis dígitos mensais, então
a cobrança previdenciária é alta”, afirma.
Alguns titulares de cartórios, acrescenta, estavam menos preparados. “Não
tinham controle de livro-caixa tão bem feito, seja preservando comprovantes
de despesas, seja pela confusão patrimonial”, diz o advogado. Berruezo só
pondera que também existem autuações que, para ele, “não param em pé”,
como a por causa de despesa educacional e a decorrente de contratos de
terceirizados. “A Receita insiste que deduções de despesas com pessoal são
limitadas a empregados.”
A matéria de cartório, afirma o advogado, “é uma verdadeira jabuticaba”. “É o
único serviço público exercido por delegação privada, ainda tem concessão
hereditária funcionando, então todo regime trabalhista, tributário,
administrativo é complicado e anômalo”, diz.
O superintendente jurídico da Associação dos Notários e Registradores do
Brasil (Anoreg), Maurício Zockun, afirma que, por causa do sigilo das
informações da Receita, não é possível identificar com precisão a que se deve o
recente aumento da arrecadação. Porém, segundo ele, os cartórios não
deixavam de pagar tributo de propósito. O superintendente também destaca
que não houve aumento no número de cartórios na mesma proporção.
Ainda de acordo com Zockun, não seria possível haver falta de pagamento de
tributos deliberada por parte dos cartórios porque eles são fiscalizados pelo
Poder Judiciário. O superintendente projeta que umas das possibilidades foi a
Receita Federal ter passado a entender melhor as peculiaridades do setor, além
da transferência dos valores de um fundo destinado a remunerar cartórios por
serviços gratuitos, que fica sob gestão do Poder Judiciário.
A própria Anoreg, diz Zockun, fez reuniões com a Receita para explicar
particularidades da atividade. Ele explica que nem todo valor pago fica com o
cartório. Parte vai justamente para esse fundo comum destinado a pagar pelos
serviços gratuitos, como a emissão da primeira certidão de nascimento.
Procurado pelo Valor, o Conselho Nacional de Justiça não deu retorno até o
fechamento da edição.