13/01/2021

Mudança na Lei das S.A. por meio de medida provisória gera polêmica

Por Ana Paula Ragazzi — De São Paulo
Fonte: Valor Econômico
Mudanças previstas para a Lei das S.A. por meio de medida provisória (MP)
dentro da iniciativa do governo para melhorar a nota do Brasil no ranking
“Doing Business”, do Banco Mundial, estão sendo vistas com ressalvas por
especialistas do mercado de capitais.
Em um debate virtual sobre o tema promovido pela Abrasca, o advogado
Nelson Eizirik destacou o temor de mudanças sem o devido debate sobre o
assunto. “Isso tem o poder de criar incertezas regulatórias”, afirmou.
Os especialistas já identificam uma proposta que, se for levada adiante
como está, deverá criar instabilidade. A MP deve alterar o artigo 122 da lei,
que trata das assembleias gerais. O novo texto vai estabelecer que
operações “relevantes” entre partes relacionadas passarão a ser
submetidas à assembleia. Caberá à Comissão de Valores Mobiliários (CVM)
definir o que será uma transação “relevante”. Essa mudança tem potencial
de gerar um problema, identificado pela própria autarquia, apurou o Valor,
dentro das discussões do grupo de trabalho que trata do tema e tem
representantes de B3, Instituto Brasileiro de Governança Corporativa
(IBGC), Junta Comercial de São Paulo, Coppead/UFRJ e da Secretaria de
Política Econômica do Ministério da Economia.
O entendimento da CVM, de acordo com fontes, é que essa mudança do
artigo 122 da lei exigiria também uma nova redação para o artigo 115, que
trata do voto do acionista em situação de potencial conflito de interesses,
como é uma operação com parte relacionada.
Esse artigo 115, no entender de muitos no mercado, tem uma redação ruim,
que deixa em aberto a interpretação do voto do controlador em situação
de potencial conflito de interesses. Há quem entenda que o controlador
está previamente impedido de votar, pelo risco de ele priorizar os
interesses próprios em detrimento dos da companhia, o que seria um
conflito “formal”. Mas há quem interprete que o conflito é “material”, ou
seja, ele pode votar e o conflito efetivo vai depender do voto dele, se for
comprovado que privilegiou interesses próprios.
A CVM costuma se manifestar previamente sobre o tema quando
consultada no âmbito de operações de reorganizações societárias. Há dez
anos, sinalizou o entendimento de que o conflito é formal; mas houve
decisões em casos específicos, e dependendo da composição de seu
colegiado, que foram na linha do conflito material.
A questão é que, hoje, a CVM se depara com esse tema uma ou duas vezes
por ano. Mas, se as operações com partes relacionadas passarem a ser
submetidas à assembleia, o tema vai passar a ser muito mais frequente. Daí
a necessidade de dar maior clareza ao mercado sobre sua interpretação.
A autarquia, apurou o Valor, sugeriu uma nova redação para o artigo 115
que, de certa forma, vai no meio do caminho entre o conflito material e o
formal. A lei passaria a liberar o voto do controlador nesse tipo de operação
desde que ela seja submetida primeiro à aprovação de conselheiros
independentes. E, se ainda assim algum acionista minoritário continuar
questionando os termos, o ônus de provar que a operação aconteceu em
condições comutativas ficaria a cargo do próprio controlador.
O Valor apurou que não houve consenso do grupo sobre a alteração do 115
e, a princípio, a MP não vai propor nova redação para o artigo. “Ano
passado houve uma tentativa de colocar na MP da Liberdade Econômica o
conflito material, sem essas salvaguardas aos minoritários, e o tema criou
muita polêmica. Acho que não quiseram voltar a mexer nesse tema via MP
agora”, avalia uma fonte que prefere não se identificar.
Procurada, a CVM informou que tem participado do grupo de trabalho e
que não faria comentários adicionais, sinalizando que as discussões ainda
podem estar em aberto. No evento promovido pela Abrasca, Gustavo
Gonzalez, diretor da CVM, dizendo manifestar sua opinião pessoal e não a
da autarquia, afirmou ser “temerário” trazer novos temas para decisão
assemblear sem definir se o controlador vota ou não. “Um artigo que
admite interpretações antagônicas precisa ser alterado, ainda mais por
tratar de um aspecto crucial da lei, que é o direito de voto. Se não estamos
prontos para discutir essa questão de conflito, também não estamos
prontos para decidir que essas operações sejam submetidas à assembleia”,
afirmou Gonzalez, no debate. Ele propôs a solução com as salvaguardas
sugeridas pela CVM, posição que já vem defendendo desde que entrou na
autarquia, em 2017.
Apesar de destacarem que a ideia de melhorar o ambiente de negócios no
Brasil, atendendo aos requisitos do “Doing Business”, é positiva, os
especialistas de mercado de capitais criticaram a adoção de medidas que
não fazem sentido ou podem causar impacto relevante no mercado local
apenas para subir posições nesse ranking.
Um advogado afirma que, no geral o “Doing Business” é útil, pois consegue
medir adequadamente situações específicas, como quanto tempo leva para
abrir ou fechar uma empresa, conseguir instalar a eletricidade ou recuperar
um crédito. Mas nesses casos, ele diz, existem métricas objetivas, que
acompanham a evolução dos processos em diversas instâncias. Quando o
ranking entra na questão de proteção aos acionistas minoritários, os
problemas começam a aparecer, afirma, porque nesse tema não há uma
métrica objetiva de avaliação.
A tese sobre operações entre parte relacionadas entrou no “Doing
Business” por conta de um estudo de um economista búlgaro, que parte da
análise de uma operação em que claramente o controlador privilegiava seus
próprios interesses em detrimento dos da empresa. A crítica que se faz é
que não parece razoável tornar esse um critério, que parte do princípio de
que operação com parte relacionada é desfavorável à empresa.
Eizirik, que é alinhado a conflito material, ressaltou que o próprio artigo 115
diz que o acionista deve votar no melhor interesse da companhia. “Se levar
a sério isso, teremos comportamento bastante correto por parte do
acionista”, diz Eizirik. No mesmo evento da Abrasca, Mariana Pargendler,
professora da FGV Direito/SP, que defende o conflito material, destacou a
dificuldade que hoje existe no Brasil de se reverter ou punir controladores
que eventualmente privilegiem interesses próprios.
Segundo um advogado que prefere não se identificar, esse é o ponto
relevante. “Seria muito mais útil se nos dedicássemos a aprimorar medidas
e caminhos para que, no caso de o controlador aprovar uma operação que
prejudique a companhia, o minoritário consiga, na Justiça, com rapidez
anular essa operação, ou de alguma forma ser ressarcido”, diz. Nesse
sentido, o critério seria o de um acompanhamento dessas operações e de
qual o tempo de ressarcimento.
“Não dá para sair adotando qualquer medida só para subir no ranking. Até
porque o Brasil vai ganhar 1 ponto com isso, mas vai continuar perdendo
10 pelo tempo que se demora para abrir uma empresa aqui. Mas para
ganhar esse ponto, podem interferir no funcionamento do mercado, o que
não parece coerente com o discurso do governo atual”, diz.
No tema de proteção ao minoritário, o único país com mercado relevante
que gabaritou no “Doing Business” é o Reino Unido. Além dele, Bulgária,
Macedônia do Norte, Quênia, Azerbaijão e Malásia tiraram nota 10. Na
avaliação de Gonzalez, da CVM, pelos critérios atuais do “Doing Business”
no tema, o Brasil não precisaria gabaritar.